domingo, 6 de junho de 2010

O Pragmático



Em 29 de Setembro Cavaco Silva fez no Palácio de Belém uma declaração aos portugueses, na sequência da patética história das escutas a Belém, da qual se pode, no mínimo, dizer que não fez sentido ou então que fez um sentido que só a Cavaco foi possível perceber. As únicas ideias claras que expôs foram que o Presidente acha que ninguém fala em seu nome, a não ser os chefes das suas Casas Civil e Militar, que acha que não é crime um membro do seu staff ter sentimentos de desconfiança em relação a outras pessoas e que descobriu as vulnerabilidades dos sistemas informáticos a investidas do exterior. Tudo o mais que quis confidenciar aos portugueses (as manipulações de membros não identificados, mas identificáveis, de elementos do partido do governo no sentido de colarem o Presidente ao PSD e a tentativa de distrair os portugueses dos verdadeiros problemas que preocupavam os portugueses), independentemente da sua realidade, veio ao mundo num discurso desarticulado, irrazoável, às vezes mesmo ilógico. Cavaco Silva não tem o dom da palavra, mas, ao contrário do que é seu timbre, naquela declaração não foi assertivo. Quando se calou, o país emudeceu confuso. Pensei que era aquela a fífia de que Cavaco havia de ficar refém. Afinal Cavaco, o intocável, também se enredava na escura teia da política menos elevada e, quando se defendeu, por inexplicável falta de eficácia, apareceu como culpado.
A 17 de Maio passado, veio com nova declaração, agora sobre o diploma da Assembleia da República que permite o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Acusando os deputados de não se terem esforçado para encontrar uma solução que evitasse “clivagens desnecessárias na sociedade portuguesa”, decidiu não vetar o diploma. O veto politico devolveria a lei ao Parlamento. Cavaco explicou que tal devolução nada mudaria, uma vez que as forças políticas que se juntaram para aprovar o diploma o fariam mais uma vez passar, obrigando o Presidente a promulgá-lo depois. Olhou, mediu, fez umas contas e decidiu não vetar, porque a lei sempre passaria, sendo melhor não perder com ela o precioso e pouco tempo que Portugal tem para discutir e resolver a “dramática situação em que o País se encontra”. Pôs, como disse, a ética da responsabilidade acima das convicções pessoais e promulgou uma lei que nunca quis.


Um sector conservador e católico da direita portuguesa perdeu a cabeça e lançou-se na busca de uma alternativa a Cavaco para a próxima corrida a Belém. Para eles, esta foi a fífia do Presidente. Cedo perceberão que não há na direita uma alternativa a Cavaco, como já se percebeu pela posição do PP e do PSD.


No meio de tudo isto, eu, que não sou uma devota de Cavaco Silva, vejo-me neste estranho papel de o compreender: Cavaco foi igual a si próprio e, sem sobressaltos, foi exactamente o homem que deu a conhecer aos portugueses. Cavaco é um pragmático e, por isso, o que faz, normalmente, é previsível. Cavaco não decide com o coração, Cavaco avalia a utilidade dos seus actos e determina-se de acordo com essa apreciação. Quem esperava de Cavaco um acto inútil, ou não o conhece, ou julgou, errando, que seria influenciado pelo estreito convívio Papal que antecedeu a decisão.


O Presidente deixou claro o que o ser humano Aníbal pensava, o que sentia, o seu desejo íntimo e decidiu em contrário, explicando de forma prática e lógica as razões por que o fez. Entendo-o, mas não deixa de me arrepiar, por ser muito contrário à minha natureza abrir mão de uma convicção.


Discorri sobre esta promulgação da lei que permite o casamento entre pessoas do mesmo sexo e sobre o percurso lógico do raciocínio do Presidente da República que nela culminou, não pela decisão, que era previsível, mas pelo que representa na definição do homem que a tomou, em oposição àquele que podemos antecipar ser o seu grande opositor nas próximas eleições para a Presidência da República: Manuel Alegre (agora apoiado pelo PS, sem que consiga perceber se foi ele que engoliu Sócrates ou se foi Sócrates que teve que o engolir). Poderia Manuel Alegre, o Poeta, promulgar uma lei que ferisse as suas convicções íntimas, nas circunstâncias em que Cavaco o fez?




Publicado no Jornal de Estremoz E, nº 3, de 03 de Junho de 2010



Ivone Carapeto

domingo, 9 de maio de 2010

UMA QUESTÃO DE ORIENTAÇÃO

Os grandes investimentos públicos vão avançar, porque o governo quer e o Bloco de Esquerda e o Partido Comunista até parece que concordam. Cavaco, ilustre Professor de Economia e Presidente da República, diz-se que não quer e recebeu esta semana um séquito de antigos Ministros das Finanças que também não querem.

Se de facto vamos ter TGV e aeroporto de Alcochete nos tempos apregoados pelo governo é, na realidade, coisa de que duvido muito. Primeiro, porque o atraso vai sendo um traço nosso, depois, porque por cá há coisas como o aeroporto da OTA que parecem inquestionáveis, que parecem que “jamais”, mas que acabam por se esfumar e, por fim, mas não menos importante, porque custa muito dinheiro que não temos.

De tudo isto, posto assim nos termos simplistas de quem não foi iluminado pela sabedoria infinita dos grandes cientistas da economia, o que de facto resulta é que uns querem o TGV e outros não o querem e todos dizem ter razões muito válidas para querer o que querem e para não quererem o que não querem. O que me deixa muito frustrada é que seja possível que uns economistas – os iluminados que suportam as intenções do governo – pensem exactamente o contrário do que pensam outros, notáveis também, que advertem para o abismo que será persistir nas grandes obras públicas projectadas pelo governo.

Neste ponto, sinto um misto de tristeza, perplexidade e mesmo de irritação, por a Economia, apesar dos cálculos, das fórmulas, dos índices, de toda a panóplia de medições e gráficos, não ser afinal uma ciência exacta, exactíssima, sendo antes um ramo do saber que nos deixa assim, irremediavelmente desarmados perante as contraditórias sentenças dos seus doutores, todos infinitamente sábios, todos irreparavelmente certos, mas todos fatalmente desavindos.

Perdidos entre as virtualidades do grande investimento público e a prudência da contenção, restar-nos-ia, como diz o outro, ter um pouco de fé, não fosse a desconfiança ser incompatível com a fé e os tempos e os factos serem mais de molde a semear a dúvida que a confiança.
Para já, somos a bancada de trabalho num imenso laboratório onde os mestres economistas e governantes vão, na linha das ciências experimentais, testando as hipóteses de salvação que lhes ocorrem, por tentativa e erro, até que um dia, talvez mais por acaso que por sabedoria, aconteça uma solução.

Eu mesma, que nas muito sofridas aulas de Economia Política aprendi que os ciclos económicos alternam a crise com o crescimento, ou, dito de outra forma, que a bonança segue a tormenta, tive a esperança de que, independentemente dos políticos de qualidade duvidosa que temos, por actuação do tal funcionamento dos ciclos ou por milagre, pouco me importava, havíamos de chegar a bom porto. Mas a viagem vai longa e os marinheiros não ajudam.

Portugal parece-nos hoje uma nau à deriva em passagem pelo Cabo das Tormentas e o homem do leme não é o Capitão do Fim. Isso faz toda a diferença.

Não é pois de estranhar que os portugueses, na sua maioria, se vão dividindo entre os deprimidos e os indiferentes, sendo a indiferença uma doença que mina de forma mortal a vida em democracia e que beneficia apenas os que pretendem manter-se no poder, independentemente da sua competência e capacidade para gerir o destino de todos, governando para o bem comum.

Não haverá, porventura, uma receita única e segura que nos coloque na rota certa. Esta crise, muito provavelmente, tem características atípicas e fenómenos desconhecidos. É talvez nova em tudo menos na sua já avançada idade. Era bom que se pusessem de acordo em alguma coisa, nem que fosse para acreditarmos que percebem do que falam. Eu, que já vou acreditando em muito pouca coisa, pelo sim, pelo não, preferia que a Economia fosse de facto uma ciência exacta. Por uma questão de orientação.


Publicado no Jornal de Estremoz E, nº 1


PS: Cavaco Silva recebera, quando foi escrita a crónica acima, os representantes do Projecto Farol e foi agendada para 10/05 o encontro com ex-ministros das Finanças. Impunha-se esta correcção.